Observatório da Deficiência e Direitos Humanos

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Projeto EQUAL - “Igualdade perante a lei e o direito à autodeterminação de pessoas com deficiência intelectual e psicossocial em Portugal”

Regime do Maior Acompanhado: persistem desafios na implementação do novo paradigma

O projeto EQUAL, promovido pelo Observatório da Deficiência e Direitos Humanos e o Centro Interdisciplinar de Estudos do Género do ISCSP-Universidade de Lisboa, teve por objetivo de analisar os desafios e oportunidades na implementação do novo Regime do Maior Acompanhado (Lei nº 48/2018). Esta nova lei eliminou os institutos de interdição e inabilitação, que existiam em Portugal, por não serem consentâneos com o estipulado na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada por Portugal em 2009. Com a nova lei as pessoas maiores de 18 anos que se encontram impossibilitadas de exercer os seus direitos podem beneficiar de medidas de acompanhamento personalizadas para cada situação, priorizando a identificação de apoios necessários para o exercício de direitos.

O estudo compreendeu a realização de 31 entrevistas a profissionais (magistrados, peritos, técnicos e dirigentes de instituições de apoio a pessoas com deficiência) e famílias de pessoas com deficiência, em diversos pontos do país. Adicionalmente, foram realizados quatro focus groups com pessoas com deficiência intelectual e psicossocial e ainda seis entrevistas biográficas (histórias de vida) com pessoas com deficiência intelectual e psicossocial que beneficiam de medidas de apoio. Procedeu-se também à recolha e análise de 752 sentenças proferidas ao abrigo do Regime do Maior Acompanhado entre fevereiro de 2019 e fevereiro de 2023, em três comarcas – Lisboa, Évora e Viana do Castelo. Um aspeto inovador do projeto foi a utilização de métodos participativos que promoveram o envolvimento ativo de quatro investigadores/as não académicas - pessoas com deficiência intelectual e psicossocial - nas atividades de pesquisa.

Os resultados revelam que a implementação do Regime do Maior Acompanhado é um processo complexo que, se abre novas oportunidades para o exercício de direitos, enfrenta ainda múltiplas tensões e dificuldades. Por um lado, existe um consenso de que a nova legislação se encontra mais próxima do espírito da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, na medida em que permite ajustar as medidas de apoio às necessidades individuais, contrariamente ao que sucedia com os anteriores regimes de interdição e inabilitação que impunham definições mais rígidas e baseadas em princípios de substituição na tomada de decisão (a pessoa era vista como um menor e não podia casar, votar, entre outros). Foi ainda salientado nas entrevistas, como aspeto particularmente positivo da nova lei, a exigência de um envolvimento ativo das próprias pessoas com deficiência nos processos judiciais, já que a legislação impõe agora a ‘audição pessoal e direta do beneficiário’ pelo Tribunal e determina que cada adulto pode escolher o seu acompanhante.

 

Acho que a conceptualização, o espírito está muito melhor, muito mais inovador, muito mais respeitador.

(B4 , Médico/a Psiquiatra, Perito/a)

A vantagem que esta reforma teve é o permitir à pessoa pronunciar-se e ter opinião, e ser valorada a sua opinião, quanto à escolha do acompanhamento e até contra a própria existência do acompanhamento e deixar essa atitude anterior paternalista. Se a pessoa precisa de alguma ajuda, temos que dar ajuda. Mas a pessoa pode não querer ajuda e muitas vezes é a sua opção, uma opção de vida diferente. Portanto, (...) o espírito desta nova legislação é deixar também que a pessoa tome as suas próprias opções e só quando necessário e dependente também da vontade que possa manifestar a pessoa, tomarem-se essas decisões.

(C3, Magistrado)

Contudo, os dados recolhidos apontam igualmente falhas e dificuldades na implementação do novo Regime, decorrentes de fatores económicos, políticos e sociais. Desde logo, a insuficiência de recursos nos Tribunais e a pressão do tempo e do volume de processos parecem colidir com os requisitos de uma legislação que é ‘necessariamente mais lenta’ pela atenção que se exige para determinar medidas de apoio ajustadas a cada caso. Acresce a persistência nos Tribunais (como na sociedade portuguesa em geral) de uma visão da deficiência ainda demasiado assistencialista e baseada no modelo médico, que enfatiza incapacidades e se baseia num ‘paradigma de cuidado’ em detrimento da promoção e apoio ao direito à autodeterminação.

 

Nós [Magistrados do Ministério Público] neste momento não temos meios humanos para tantos pedidos. (...) Porque, claro, se eu tratar de todos os pedidos que me aparecem lá como tratava anteriormente as Interdições, eu claro que despacho 100 processos num instantinho, e mantenho os meus processos ali controlados. Agora, eu não posso tratar os processos de Maior Acompanhado como tratava as Interdições, porque não é isso que é a filosofia e não é isso que se pretende.

(C5 Magistrado/a do Ministério Público)

Esta nova lei choca com a necessidade de se fazer tudo mais rápido, mais rápido e mais rápido. Porque esta lei necessariamente é mais lenta. Portanto, o que eu vejo é a pouca compatibilidade entre ter os cuidados a que a lei obriga e ao mesmo tempo a urgência a que ela obriga.

(B4, Médico/a Psiquiatra, Perito/a)

As mentalidades demoram a ser mudadas, não é? Não se mudam mentalidades com decretos de leis nem com leis. Acho que, por exemplo, e posso falar ao nível da magistratura, eu vejo que há colegas que ainda olham para o novo Regime como se fosse, enfim, a mesma coisa que a Interdição, só mudou o nome.

(C5 Magistrado/a)

A análise de 752 sentenças (incluindo apenas pessoas com idades entre os 18 e os 55 anos) em três comarcas selecionadas revela a forte predominância, entre 2019 e 2022, da medida mais restritiva de acompanhamento: em 82% das sentenças foram atribuídos poderes de representação geral aos acompanhantes, contrariando as recomendações do Comité das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência que no seu Comentário Geral nº 1 reitera que “a capacidade jurídica é um atributo universal inerente a todas as pessoas em virtude da sua humanidade e deve ser garantido para as pessoas com deficiência, em condições de igualdade com as outras”.

Porém, também foi possível verificar que nas sentenças mais recentes, proferidas entre fevereiro de 2022 e fevereiro de 2023 (N=219) esta situação muda ligeiramente: 78% de sentenças atribuem poderes de representação geral aos acompanhantes, e 21% representação especial, ou seja, uma medida de acompanhamento menos restritiva em termos de direitos. 

Da mesma forma, de acordo com a nova lei a restrição de direitos pessoais deve ser excecional. Porém, apenas em 10% das sentenças analisadas não se verificou qualquer restrição de direitos pessoais: 84% das pessoas com medidas de acompanhamento não podem testar, 72% não podem exercer responsabilidades parentais (inclui perfilhar, exercer Responsabilidades Parentais, adotar e direitos reprodutivos), 60% não podem casar, 53% não podem deslocar-se ou fixar domicílio, 29% estão impedidos de exercer direitos reprodutivos, e 13% (N=98) estão impedidos de votar. 

Estes resultados sugerem a necessidade de continuar a promover a formação dos atores do sistema (magistrados judiciais e do ministério público, peritos, técnicos das instituições de apoio a pessoas com deficiência) sobre o novo paradigma de direitos preconizado na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que pretende promover o apoio à decisão, em detrimento da representação (em que o acompanhante decide e o acompanhado fica impedido de exercer direitos) mas também de capacitar as próprias pessoas com deficiência intelectual e psicossocial e as suas famílias preparando-as e apoiando-as no exercício do seu direito à autodeterminação. Foi ainda sugerida a necessidade de revisão da legislação do Regime do Maior Acompanhado no sentido de clarificar alguns conceitos, tais como o âmbito e conteúdo dos regimes de acompanhamento (Art.º 145) prevenindo assim práticas desfasadas dos objetivos da lei e da Convenção. 

Financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, este estudo foi promovido pelo ODDH/CIEG do ISCSP-Universidade de Lisboa, entre janeiro de 2021 e dezembro de 2023. A pesquisa, coordenada pelo ODDH e CIEG/ISCSP-ULisboa, contou com uma equipa de investigadores académicos e não académicos (pessoas com deficiência) e a parceria do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Conselho Superior da Magistratura, Procuradoria-Geral da República, Provedoria de Justiça, Federação Nacional de Cooperativas de Solidariedade (FENACERCI), Federação Nacional de Entidades de Reabilitação de Doentes Mentais (FNERDM) e Federação Portuguesa para a Deficiência Mental (HUMANITAS).

 

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